“Quem é esse?” - Eles não sabem quem é Cazuza!
- Richell Martins
- 13 de jun.
- 6 min de leitura

Outro dia, vi vários vídeos do João Guedes (@joaogguedes_) gravados na entrada de algumas festas, escolas, na praia, nas ruas de Niterói (RJ). Ele faz um desafio simples: mostra fotos de grandes artistas da música brasileira para jovens da Geração Z. A proposta é que eles identifiquem as pessoas das imagens. Fiquei realmente impressionado com as respostas.
Eles não reconheceram (ou nem ouviram falar em) Tim Maia, Rita Lee, Ana Carolina, Seu Jorge, Zeca Pagodinho, Caetano Veloso, Raul Seixas, Alcione, Belchior, Jorge Ben Jor, Elis Regina, Ney Matogrosso, Nando Reis, Chico Buarque e Cazuza… nada! Ou seja, amigos, o que achávamos que seria eterno pode estar começando a desaparecer. Para muitos desses meninos e meninas, é como se essas figuras fossem parte de um passado que simplesmente nunca existiu.
O João acabou, sem saber, se tornando um “fotógrafo” da realidade cultural dessa geração que tem de 15 a 20 anos.
Eu conversei com ele, para entender de onde surgiu a ideia de fazer esse conteúdo para as redes sociais, já que ele também é bastante jovem, tem 22 anos. João é de São Gonçalo, mas grava seus vídeos em Niterói (RJ).
Como nasceu a ideia
Assim que resolveu criar vídeos interessantes para as redes sociais, João criou um quadro temático que, até hoje, ele faz: pergunta às pessoas quais são seus artistas favoritos e coloca músicas para tocar. Quem acerta quais são as músicas, ganha um prêmio.
“Sempre brinquei com meus amigos, porque só eu gostava de MPB e eles não conheciam ninguém. Pensando em novos quadros, me veio essa ideia de pegar a foto de artistas mais antigos, das décadas de 1990, 1980, e botar pro pessoal acertar”, conta ele.
O efeito dos vídeos foi imediato. “Toda vez que eu vou a alguma escola (eu sempre gravo em algumas escolas públicas em Niterói), o pessoal nunca sabe quem é [o artista mostrado nas fotos], não adianta. Uma vez ou outra, aparece alguém que sabe e fala que escutava sempre com o pai, com a avó”.
Fiquei curioso para saber, então, de onde João tirou as referências - se das experiências em casa, se de pesquisas na internet. “Eu escuto música brasileira desde criança, quando eu tinha meus 8 ou 9 anos e comecei a escutar Charlie Brown Jr. E aí, do rock brasileiro, eu fui escutando MPB e sempre gostei muito”.
Os vídeos dele mostram que a maioria da garotada que é ouvida ouve rap ou trap. O próprio João manifesta algum incômodo com o desconhecimento de seus entrevistados em relação à música produzida pelos compositores que ele usa em seu quadro.
“Sou uma pessoa que consome rap e trap. Só que eu acho muito importante ter essa parte da cultura da música brasileira, de tudo o que se formou desses grandes artistas. O que faz sucesso, hoje em dia, é música que fala de ‘tigrinho’, do ‘job’ e de bunda balançando. Não vou negar que eu gosto de escutar, às vezes, mas não conhecer um Caetano Veloso, um Djavan, uma Marisa Monte… Eu sempre fico chateado com os vídeos também”, diz.
A “MPB” está morrendo?
O fato é que, no século 21, a forma como consumimos música mudou radicalmente. Saímos das rádios e das mídias físicas para o streaming, os algoritmos e os vídeos curtos. Apesar de ter sido ampliado o acesso a músicas dos quatro cantos do mundo, o sucesso de um lançamento é medido em segundos: se não “engajar” nos primeiros 5 ou 10, já era!
As canções são criadas para funcionar bem em festas, em rolês ou em dancinhas no TikTok e playlists de academia. Uma característica forte é que, para atender a essa impermanência, a regra é fazer música colocando o refrão logo no começo. E nada de introduções instrumentais longas. A lógica é o consumo instantâneo, o fast-food musical.
E o que isso tem a ver com a galera não saber quem é o Cazuza? Tudo.
Estamos vivendo um apagamento cultural silencioso (ou muito barulhento!). As gerações pós-anos-2000 têm perdido contato com a história da música brasileira. Desconhecem referências importantes como Alceu Valença, Elza Soares, Chico Buarque, Djavan e Beth Carvalho e pulam direto para uma realidade muitas vezes estrangeira, bem diferente da sua própria.
Atenção, hein! Nada contra ouvir o que vem de fora (todo mundo ouve!), afinal muita coisa chegou aqui e transformou nossas referências com muita contribuição: o rock, o reggae, o soul etc. Artistas de fora do Brasil são essenciais para conhecermos outras culturas. Mas é preocupante quando o que é nosso fica invisível. Há quem conheça muito mais sobre música pop coreana do que quem faz música na própria cidade.

Aliás, as entrevistas que o João faz nas ruas mostram que a meninada “Z” ouve artistas brasileiros também, mas com um muro temporal de 5 metros que não deixa enxergar nada de 2015 para trás. Um dos garotos até reclama: “Pô, você só tá puxando artista de velho!”.
O Belchior já dizia: “O novo sempre vem”. E vem mesmo, com tudo! Mas nem sempre o novo permanece - e essa nova forma de consumir pode deixar tudo velho muito rápido. Quando a gente cita os nomes todos da música brasileira que nasceu no século 20, não é por apego ao passado ou saudosismo, como quem diz “Ah, mas no meu tempo…”. É muito mais por assistirmos à descarada bagunça que a velocidade do mercado musical tem feito com a cultura de todos os países, meio que deixando tudo muito homogêneo, parecido. Quanta gente boa está fazendo música atualmente mas o algoritmo esconde.
A guerra entre Cultura e Mercado
Existe uma filósofa francesa, Nathalie Heinich, que tem batido na tecla de que o valor da arte não pode ser reduzido unicamente ao valor econômico ou de mercado. Mas o negócio tá feio porque o que tem valido mesmo, para quem produz música para vender, é o número de plays nas plataformas de streaming, não a relevância cultural. E isso reflete até na forma como os artistas são descobertos e promovidos. Hoje, não basta talento. É preciso “performar” bem nas redes sociais.
Claro que há exceções como Emicida, Maria Gadú e Criolo, por exemplo, que têm insistido em fazer música com alma, com causa e com história. E, graças aos deuses, há um público que valoriza isso. Muita gente jovem, especialmente nos círculos [que outros insistem em chamar de] “alternativos”, está redescobrindo Clara Nunes, Cartola, Gal Costa, Bethânia, Tim Maia e Cazuza. Os vídeos de resgate no YouTube e algumas homenagens na internet mostram que nem tudo está perdido. Inclusive, é muito emocionante ver Liniker cantando com Milton Nascimento. Mas ainda é pouco.
“O que percebo é que a MPB está morrendo. Tem alguns artistas novos que são fortes, mas muito poucos. E eu não vejo como isso pode mudar”, comenta o João Guedes. É mesmo um horizonte difícil de definir, mesmo espremendo os olhos pra ver.
Aí, chegamos a um momento de transição: os artistas que ajudaram a construir um Brasil de cultura firme em sua diversidade e riqueza, hoje na casa dos 70, 80 anos de idade, estão aproveitando que ainda há gerações que os reconhecem e pisando no acelerador das grandes turnês. Estão certíssimos! Logo, logo, o cenário pode ficar mais difícil.
Digo isso porque música não é só entretenimento. É identidade, memória. A gente se reconhece muito como povo e como cultura através do que canta, do que ouve, do que lembra. Quando os jovens não sabem quem é Cazuza (e tantos outros), não é só o nome de um artista que se perde, é uma parte do Brasil que desaparece junto.
Talvez, os maiores desafios das gerações antes da Z e que ainda estão por aqui sejam: 1. fazer a música voltar a ser ouvida e não apenas curtida; 2. não desistir da música fora do fast-food, valorizando mais os artistas que estão empenhados em contribuir, com suas identidades e suas origens. Será possível?
Mexido com tudo isso, criei uma playlist no Spotify e no Deezer de "música de velho" para quem quer saborear (ou conhecer) os artistas que a galera entrevistada pelo João não reconheceu ainda. Chega mais e clica aqui 👇 e aproveita pra comentar.
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Agradecimento ao João Guedes, que muito abertamente contribuiu com suas respostas.
Um texto muito curioso sobre uma reflexão muito importante. Curiosamente, para as novas gerações, falar em arte, cultura, mercado da música, consumo é uma chatice que não interessa. Não à toa, eles usam a expressão "coisa de velho", como se envelhecer fosse para uns e não para eles. Lamentavelmente, acham que seguem o que seus gostos mandam, sem perceber que há uma indústria pesada e cheia de técnicas muito bem testadas para levar ao consumidor aquilo que gera mais lucro. Infelizmente, a coisa não é bem assim