Dori Caymmi lança "Utopia" musical, indiferente ao Brasil de 2025
- Richell Martins

- 17 de out.
- 6 min de leitura
O mestre da canção respira leve em seu novo álbum quase todo de inéditas, fazendo música como acredita (e sempre acreditou) que tem que ser.

Com produção assinada pelo cearense Jorge Helder, "Utopia" (Biscoito Fino, 2025), de Dori Caymmi, chega às plataformas de streaming (e não às lojas de discos como, com saudade, poderia ser ainda) com 10 composições, das quais nove são inéditas.
A capa já é uma escolha e tanto: um quadro pintado por seu pai, Dorival Caymmi, retratando o pequeno Dori de 1946, com uns três anos de idade, sem grandes alegrias na cara. "Nele, sou o ‘tô de mal’ da canção ‘Marina’. Pode ter existido uma Marina na vida do meu pai, não duvido nada. Mas o ‘tô de mal’ sou eu." Comentou Dori ao jornalista Cláudio Leal (Folha de SP).
Quando Dori, com 82 anos recém-completados, escolhe sua imagem da infância como capa de álbum, entrelaça as pontas da linha com nobreza, autêntico como escolheu ser, respeitoso à própria estrada. O mesmo é feito com a escolha do título, por considerar que realizar um trabalho com 'música extremamente brasileira', ante o que ele chama de música enferma, seria utópico. Em outros tempos, "Utopia" seria um bom nome para um álbum de uma banda jovem, talvez de roqueiros. Dada a inversão apontada por Dori, essa mesma palavra absorve outra perspectiva.

Apesar da idade, a voz de Dori ainda flui como se tivesse metade do tempo, com o cuidado preciosista que ele tem com todos os outros ingredientes de seu trabalho. E isso é um deleite para quem conhece sua discografia.
Quase todas as composições são em parceria com o letrista, poeta e compositor fluminense Paulo César Pinheiro, que dispensa apresentações. Quem não o conhece, desconhece um pedaço grande da música brasileira.
Participam, como parceiros e intérpretes: Mônica Salmaso, Sérgio Santos, Boca Livre (Zé Renato, David Tygel, Lourenço Baeta e Maurício Maestro), MPB-4 (Aquiles Reis, Dalmo Medeiros, Miltinho e Paulo Malaguti Pauleira) e Ivan Lins.
Como músicos: Jurim Moreira (bateria e percussão), Itamar Assiere (piano), Paulo Aragão (violão), Iura Ranevsky (violoncelo), Cristiano Alves (clarinete), João Bustamante (violoncelo), Dirceu Leite (sopros), José Carlos Bigorna (sopros), Neymar Dias (viola caipira), Lulinha Alencar (sanfona) e o próprio Jorge Helder (baixo).
Faixa a faixa
Assim como, muitas vezes, seu pai, Dorival, introduzia suas canções praieiras, Dori começa o álbum assobiando, em "Búzio azul", mergulhado num retrato igualmente praiano. Com letra de Paulo César Pinheiro, a faixa tem o grupo Boca Livre como convidado. Sim, aquele quarteto fantástico que havia se desfeito em 2021, durante a pandemia, mas que se refez, dois anos depois. "Quero marear Mariana na areia do mar" é a frase que entrega o amor descrito nas estrofes, pulsante no "coração de pé de palmeira".
O casamento entre a raiz caymmiana de Dori e a poesia certeira e profunda do Paulo César faz milagres. Esse matrimônio tem uma receita verdadeiramente brasileira, "é uma coisa do passado mesmo"- como citou o próprio Dori, em sua entrevista à Folha de SP. Mas um passado saboroso, carregado de futuro, de eternidade, bem diferente daquilo que ele mesmo critica como música que "virou uma coisa de ser famoso, de fazer sucesso".
Em "O nome da moça", parceria de Dori com o paulistano Roberto Didio (considerado pelos mestres como letrista de excelência), a convidada é Monica Salmaso. A faixa é a reafirmação de que o "Utopia" foi feito para o exercício quase extinto da escuta. Tem um caminho poético na letra que Dori emoldurou com o violão, de maneira que as imagens vão se sobrepondo como camadas, nos detalhes da 'casa de vila'.
"Viageiro", a música seguinte, traz um reencontro valioso. Além da cantora paulista Mônica Salmaso e do violonista e do compositor mineiro Sérgio Santos, tem o Boca Livre com o MPB-4. Com suas assinaturas, os dois grupos vocais são históricos para a cultura brasileira. Mais uma vez, que alquimia bonita entre o dicionário de Paulo César Pinheiro e as harmonias de Dori Caymmi. A música sai da jangada e vai para a estrada diversa mas sem se distanciar do mar, enfrentando os desafios da jornada pelo 'chão de água, pedra e areia'. Nela, aparece a sanfona de Lulinha Alencar, grande músico potiguar.
"Pelas mãos de algum poeta", parceria de Dori com Sérgio Santos, é talvez o título mais singelo do álbum. A temática da relação entre palavra e poeta é um dos mais basilares da escrita. Ao mesmo tempo, é bom ver que Dori separou um lugar para ela, a bordo da sua utopia. A música está no molde claro do poema musicado, com estrofes mais longas e ali se ouve as rimas ditarem os ciclos melódicos e harmônicos.
Em "Sozinho de nascença", a poesia de Paulo César Pinheiro nos entrega uma fórmula da qual ele é mestre: a biografia de personagens únicos, recortes finos de suas histórias, como já fez em "Na volta que o mundo dá" (parceria com Vicente Barreto). Nesta faixa, Dori dá voz a um eremita que tanto não pede licença quanto não faz visita, que de bicho se avizinha mas de gente não anda perto. É profunda a canção, dessas que é preciso ouvir atento, vez a vez, até que sua atmosfera seja assimilada, cantada, sentida.
Com a mesma paisagem sonora, voltamos às águas salgadas do mar, com "Navegação", numa viagem entre continentes banhados pelo Atlântico. Violões e violoncelo traduzem as aventuras de um navegante concebido pelos versos de Paulo César, em primeira pessoa - aquela fórmula que citei. Assim como "Sozinho de nascença", esta canção é um livro lido em três minutos, uma vida traduzida em segundos. Traz, como também é próprio da poesia de Pinheiro, as lições que seus personagens têm para contar, em versos como "depois que trovoa, precisa ter sangue frio" e "no fim, a água se escoa e fica só desvario". O arremate, a última frase da música é golpe de mestre. Deixo que vocês ouçam.
Ivan Lins chega para participar em "Isabela", como compositor parceiro e cantor. É outro clima, mudança de ato. A música tem o DNA do Lins, carregando também os genes de seus contemporâneos e ascendentes musicais: a contemplação da mulher e a descrição de seus traços, seus detalhes, tudo ambientado na ilha de Paquetá, no Rio de Janeiro.
Do Rio, o fio de "Utopia" nos conduz a Pernambuco, com "Ninho de Vespa", a única faixa que não é inédita, pois esta é um lançamento de 1990. Bom, estamos aqui com dois cariocas (Dori e P.C. Pinheiro) que compuseram um frevo pernambucano. Mas vejam só: um, filho de baiano; outro, filho de paraibano. O Nordeste está nas veias de ambos e a alegria do frevo é um bom balanço para o álbum, com a participação do MPB-4. Os primeiros versos são uma graça! "Você não morre tão cedo / acabei de falar mal de você", com uma prosódia perfeita! Delícia de ouvir.
Aí, vem a bossa "Filete d'água", que também retoma outro clima. Canta a lágrima que nasceu de um amor ferido, perdido. Um tema que também é usado recorrentemente na música brasileira. Embora faça a relação comum entre a lágrima e o orvalho numa flor, a poesia resolve muito bem a cena com o que vem a seguir: "mas a dor que nunca passa é a que transborda a taça". Música leve, para fechar aos poucos as janelas do álbum com "Filigrana", uma canção que, embora não tenha sua participação como intérprete, está num molde muito próprio para Mônica Salmaso.
"Filigrana" é palavra que quase não se usa mais, mas ainda muito se vê seus resultados. É uma técnica ornamental utilizada principalmente na criação de joias, bijuterias. Gera desenhos delicados, por vezes imitando formas da natureza. Usada como título da música, a palavra poderia dar lugar a quaisquer outras referências da letra - "camafeu de porcelana", "coral rubro", "ouro âmbar", "rara flor", "grão violeta", "entre a beira e o precipício". Tudo ficaria bastante bonito, mas curioso mesmo é usar filigrana. E é uma forma muito suave de encerrar a manifestação utópica de Dori por uma música brasileira lapidada em preciosidade, esculpida em sentidos.
Ouça atentamente "Utopia":
Ouça também no Deezer e na Amazon Music.




Comentários