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Mulher é flagrada comendo lixo na Beira-Mar de Fortaleza. Por que isso comoveu a imprensa?

  • Foto do escritor: Richell Martins
    Richell Martins
  • 28 de ago.
  • 3 min de leitura
Capa da publicação mostra manchete de matéria do G1 que trata com surpresa fato de mulher se alimentar de lixo em orla de Fortaleza.
Foto: Reprodução da matéria

Não entendi o clima de espanto e coisa extraordinária que a manchete desta matéria tenta transmitir*. Há uma pitada de "isso não deveria acontecer no cartão-postal da cidade".


A realidade social, quando invade a blindagem do turismo, fere o filtro da dormência. Mulheres, homens e crianças, como esta senhora, estão espalhados pela cidade inteira, comendo aquilo que você e eu descartamos como lixo. E comem, não apenas por problemas de ordem mental - como precipitadamente diagnostica a matéria, mais à frente -, mas por necessidade profunda.


Captura de tela de matéria publicada sobre mulher que foi flagrada comendo em lixeira na Beira Mar de Fortaleza.
Reprodução de trecho da matéria.

"Oh, vamos buscar esta mulher e oferecer acolhimento necessário, porque, este ano, já realizamos mais de 330 mil atendimentos para pessoas com necessidades mentais". É mesmo?


Esta comoção aconteceria por cena igual em avenida não turística, a 3, 5, 10 quilômetros do cartão-postal da cidade? A mulher que come da lixeira divide a fotografia com quem aparece em cliques de corrida, com o suor escorrido que está no hype das redes sociais; com o close de quem procura as curtidas, enquanto ela procura comida.


Captura de tela de matéria publicada sobre mulher que foi flagrada comendo em lixeira na Beira Mar de Fortaleza.
Reprodução de trecho da matéria.

"Oh, mas distribuímos, todos os dias, 1.200 refeições para pessoas em situação de vulnerabilidade social". E sabe quantas são essas pessoas, na real? - Pelo menos, 10.000 (Dados do Cadastro Único).


"Então, é nosso dever alimentar 10 mil pessoas por dia?"


Imagine o caminho que uma pessoa faz, desde quando nasce, do que vive até o exato momento em que pega a colher e se serve do que há na lixeira do maior cartão-postal da cidade. Existe a cidade ao redor dela. Neste lugar, com 2,5 milhões de pessoas, reside a desigualdade amparada pelo turismo e desamparada pela política. Será mesmo a fome o único desafio que essas dez mil pessoas enfrentam, todos os dias?


Você se afasta da orla e se aproxima do que os turistas não podem ver.


Há muitas lixeiras nesta cidade e, dentro delas, muita comida jogada fora. Há muita gente com a fome que não pode aparecer à beira-mar. E não é possível, com o sistema político e econômico que temos hoje, em todo o país, resolvermos a questão da vulnerabilidade social. Estamos acostumados à disparidade e ela não nos envergonha devidamente.


Não somos a Finlândia


A Finlândia está surpreendendo até o restante da Europa, ao ter apenas 0,08% da sua população em situação de rua, resultado da política de "Housing First" (Habitação em Primeiro Lugar, em tradução livre). O país pretende zerar este percentual até 2027.


Habitações destinadas a pessoas em situação de rua na Finlândia, resultado de programa social denominado "Moradia primeiro".
Habitações para pessoas em situação de vulnerabilidade na Finlândia (Reprodução/Internet)

Mas não somos a Finlândia, nem de longe. São outras raízes, histórias, referências e políticas.


- Nossa sociedade (ricos, pobres, classe média, políticos, juristas, advogados, jornalistas, médicos, diaristas, porteiros, todos) não nasce em uma nação que historicamente trabalha pela igualdade e pela dignidade.


- Nossos recursos públicos escapam pela corrupção com tanto volume que qualquer ação maior de melhoria nunca é prioridade máxima, porque depende de longo prazo. E por fazermos política de mandato, não funciona.


- Nunca fomos, Brasil, um país verdadeiramente próspero a ponto de sermos inspiração para o mundo.


- Varremos, sempre, para debaixo do tapete.


Procurem a mulher da matéria; ofereçam-na abrigo e comida; conversem com ela; e ainda não terão feito o mínimo para tornar esta cidade maior do que seus cartões-postais.


E, empresas de imprensa, melhorem.


*Matéria publicada em 27/08/2025, neste link.

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